A Grande Mudança Vocálica, ou por que a ortografia dos vogais em inglês é tão confoosa

Por que a discrepância entra a ortografia das vogais em inglês é tão grande em relação a quase todas as outras línguas que usam o alfabeto latino? Por exemplo, a escritura <oo> representa o som /u:/ que deveria ser a da letra U. <ee> e <ea> soam como /i:/ que geralmente é função da letra I, e <a> é ora /ɑ/, o que não há nada de estranho, ora o bem inesperado /eɪ/.

Podemos fazer um contraste com o espanhol, em que os grafemas A E I O U representam os sons /a/ /e/ /i/ /o/ /u/, preservando os valores originais do latim. Outros idiomas europeus, que têm sistemas vocálicos mais complexos, inclusive o português, geralmente têm ortografias claramente fundamentas nas valores “continentais” das letras.

Por que não se escreve “eye” ai, “food” fuud, ou “treaty” triti? A explicação depende de um fenômeno chamado a Grande Mudança Vocálica.

Introduzido pelo linguista dinamarquês Otto Jespersen no começo do século 20, o GMV se refere à reorganização profunda do conjunto de vogais longos que ocorreu aproximadamente entre 1300 e 1700, entre as épocas do Chaucer e do Shakespeare. Essa transformação às vezes até se considera a fronteira que marca o fim do inglês médio e o início do inglês moderno.

Jespersen notou que as vogais longas do inglês médio sofreram uma série de mudanças que parecem formar um conjunto coerente. Descreveu o padrão no seguinte gráfico:

Gráfico de Jespersen (1909)

A parte de esquerda do gráfico representa as transformações das vogais longas anteriores. O movimento para cima indica que cada uma das vogais ficou um nível mais fechada, tomando o lugar da próxima. A vogal mais fechada /i:/ não teve mais aonde ir (se fechar-se mais ainda, a língua ia tocar no palato e assim fazer uma consoante) e foi forçada a sofrer uma outra mudança, formando o ditongo /ei/, o que depois virou /ai/, o chamado “I longo.” Este mecanismo hipotético e chamado chain shift (deslocamento em cadeia): uma mudança de som desencadeia uma reorganização do sistema inteiro porque os falantes tendem a ajustar a sua pronuncia para evitar a fusão de dois fonemas cuja distinção é importante para a inteligibilidade.

As vogais longas posteriores sofreram mudanças parecidas: cada uma ficou um nível mais fechada, e a mais fechada /u:/ foi forçada para fora e virou o ditongo /ou/.

Embora os sons tenham mudado, a ortografia ainda se baseia na fonologia antes da Grande Mudança. Para ter uma idéia concreta de como isso funcionava, basta ver este vídeo dos Contos de Cantuária enunciados no inglês médio, aproximando a pronúncia que teria usado o Chaucer no século 14.

Também podemos fazer um resumo das mudanças na forma de uma tabela das vogais longos do inglês médio e os seus equivalentes no inglês moderno (adaptado da Wikipédia):

PalavraPronúncia original aproximadaVogal no inglês médioVogal no inglês moderno
bite“beet”/iː//aɪ/
meet“mate”/eɪ//iː/
meat“met”/ɛ://iː/
mate“maht”/ɑː//eɪ/
out“oot”/uː//aʊ/
boot“bote”/oʊ//uː/
boat“bot”/ɔː//oʊ/

(é interessante notar aqui que o som /a/ da palavra father é uma inovação posterior à Grande Mudança que encheu o vácuo deixado pela falta de vogal aberta.)

Uma das coisas mais interessantes na linguística é como padrões abstratos emergem de processos tácitos, privados de intencionalidade, inseridos num contexto corporal e social e distribuídos no tempo e no espaço. O gráfico do Jespersen apresenta um esquema simples que explica as mudanças que ocorreram entre o “inglês médio” e o “inglês moderno.” Mas de fato nunca houve um só “inglês médio.” Melhor dizer que existiram vários dialetos que costumamos interpretar como fazendo parte de um fenômeno maior chamado “inglês médio.” E no inglês moderno as realizações dos vogais não são nem de longe as mesmas entre todas as variedades do idioma. Através de análises de textos escritos na época sobre a pronúncia e de comparações entre as variedades sobreviventes e históricas do inglês, sabemos que as mudanças compreendidas dentro da Grande Mudança Vocálica de fato ocorreram gradualmente, num período de vários séculos.

Nos anos 1980, os linguistas Stockwell e Minkova introduziram uma análise que desconstruiu o conceito da Grande Mudança que já tinha se tornado fundamento da história da língua inglesa. Eles mostraram que o modelo do “deslocamento em cadeia” só funciona, no máximo, para as vogais semifechadas para fechadas, enquanto as outras mudanças nas vogais mais abertas (quadrado cinza no gráfico) ocorreram várias gerações mais tarde, em épocas diferentes segundo o dialeto, e, longe de participar num deslocamento em cadeia, de fato causaram fusões com outros vogais em algumas palavras. O que parece um fenômeno coerente quando visto de longe, provavelmente não é mais do que a acumulação através dos séculos de mudanças no sistema fonológico que têm pouca ou até nenhuma conexão causal entre si.

Gráfico do Stockwell (2002)

Matthew Giancarlo (2001) escreveu um artigo fascinante sobre a história do conceito da Grande Mudança Vocálica, mostrando como Jespersen e os seus contemporâneos e seguidores idealizaram a língua inglesa como um objeto unificado que evoluiu através to tempo e em direção a uma forma mais perfeita e racional – o inglês moderno padrão – e como esse conceito os ajudou a empacotar as multifacetadas evoluções no modelo simples que todo estudante da história da língua inglesa conhece.

Em muitos aspectos o debate sobre o conceito da GMV recapitula a perpétua divisão dos lumpers contra os splitters, os modelos idealizados contra a descritivismo, o abstrato contra o concreto. Entender completamente o que aconteceu pode até ser fora do nosso alcance; certamente não dá para representar uma verdade complexa num gráfico do estilo Jespersen. Talvez a GMV seja uma abstração esclarecedora, uma ficção útil; por outro lado talvez seja um conceito enganador, mostrando rastros de ideologias nacionalistas e coloniais, conforme a análise de Giancarlo. Talvez seja tudo isso ao mesmo tempo.