Os Homo erectus tinham linguagem? Segundo Daniel Everett, foram eles que a inventaram

Resenha do livro Linguagem: A História da Maior Invenção da Humanidade:

Quando era doutorando, sempre li referências a Daniel Everett como um personagem controverso e meio heterodoxo na área de linguística, mas até agora, nunca tinha lido nada dele. 

A proposta mais controversa do Everett é a de que grande parte das características estruturais e, especialmente, sintáticas das línguas humanas, supostamente universais e sem as quais a linguagem seja inimaginável, na verdade não são nem universais nem essenciais. 

Ele baseia essa afirmação nas observações feitas das línguas faladas na Amazônia brasileiras, principalmente o pirahã. Everett afirma que essa língua carece de estruturas hierárquicas e recursivas, mas ainda assim é uma língua completa e plenamente adequada para a comunicação. Assim, ele ataca a hipótese chomskyana de que a linguagem humana pode se descrever como um aparato cognitivo inato, computacional, que manipula e combina símbolos em estruturas maiores. Em vez disso, Everett acha que o núcleo da linguagem seja o uso símbolos (i.e. palavras) para comunicar, o que leva a toda uma série de comportamentos relacionados com a linguagem, no qual o papel da sintaxe é secundária.

A grande descontinuidade

No livro, Everett concentra na grande questão: Como surgiu a linguagem? Evoluiu, foi inventada, ou foi uma combinação das duas possibilidades? 

Essa questão é particularmente difícil porque os primatas não humanos não parecem ter nenhum sistema de comunicação que possa ser interpretado como “protolíngua” ou precursor direto para a linguagem humana. Os chimpanzés, bonobos e gorilas de fato comunicam entre si através de sons e gestos, mas não parecem ter o equivalente das palavras, fonologia, ou sintaxe das línguas humanas. Mesmo se são capazes de comunicar com símbolos quando treinados pelos pesquisadores, os primatas não humanos não conseguem falar com o trato vocal (laringe, língua, lábios, etc.) do mesmo jeito que nós o fazemos. 

Então, como os nossos antepassados hominídeos ganharam a fala? No paradigma chomskyana, a linguagem teria surgido no Homo sapiens como resultado de evolução biológica. O argumento atrás dessa afirmação é meio indireto e complexo, mas (simplificando) é que a nossa habilidade linguística ultrapassa o que poderíamos fazer com mera aprendizagem usando as nossas habilidades cognitivas gerais, então deve depender de adaptações cognitivos inatos, então a linguagem não poderia ter sido inventada, mesmo se os detalhes de como isso seja implementado no nosso genoma e cérebro, e como essa evolução ocorreu, são muito incertos. E porque os Homo sapiens têm cérebro maior, mudanças na anatomia do trato vocal, e comportamentos mais avançados do que os nossos antepassados, é comumente afirmado que o evento evolutivo tenha ocorrido só com a nossa espécie.

Em vez disso, Everett argumenta que a linguagem foi inventada, provavelmente há quase 2 milhões de anos atrás pelos Homo erectus. Segundo a teoria dele, os erectus inventaram os símbolos, e isso criou o contexto para uma coevolução do corpo e cérebro com as línguas: um exemplo do efeito Baldwin, em que os indivíduos que melhor conseguiam usar a linguagem tinham uma vantagem evolutiva dentro do contexto cultural e comportamental, e as próprias línguas também evoluíram através do tempo em função das necessidades e habilidades dos seus usuários.

Tudo a partir dos signos

Segundo Everett, os Homo erectus já atingiram um nível de complexidade comportamental há 1-2 milhão de anos que sugere que provavelmente tinham sistemas de cultura e comunicação bastante desenvolvidas. Apesar de que a maioria das ferramentas não líticas não sobreviveram até os nossos dias, há evidências de que os erectus sabiam fazer muito mais do que bater duas pedras. Eles se espalharam pelo mundo e colonizaram ilhas, o que nos leva a acreditar que construíam jangadas, e provavelmente planejavam as migrações e expedições de caça e pesca. 

No início, essas comunidades de caçadores-coletores teriam inventado os símbolos: para melhor coordenar as atividades coletivas, eles teriam feito barulhos (talvez acompanhados por movimentos) específicos para referir a objetos, ações e relações. Agora vem a grande idéia do Everett: a partir desse ponto, a linguagem com todos seus aspectos teria emergido gradualmente como consequência das necessidades comunicativas dos seres humanos, seus corpos, sua inteligência e cultura, e a estrutura da informação presente em seus meios ambientes e implícita em suas interações socias. Os avanços que vieram depois com os Homo sapiens seriam o resultado de um processo coevolutivo em cima de um sistema linguístico já existente.

No resto do livro, Everett elabora o que isso significa em relação às várias propriedades da linguagem que são de interesse para os linguistas. Por exemplo, a fonética produz vogais, consoantes, e sílabas porque isso é a forma mais eficiente de transmitir informação em uma forma facilmente perceptível pelo nosso sistema auditivo. A fonologia teria convergido na estrutura de “dupla articulação” de fonemas (elementos menores sem significado) que se combinam para formar palavras (elementos maiores com significado) por causa da necessidade de criar muitos símbolos distinguíveis. A gramática teria introduzido estruturas hierárquicas de frases e sintagmas para reduzir a demanda sobre a memória de trabalho e ajudar a distinguir as diferentes papéis que pode ter uma palavra num enunciado (tópico, comentário, sujeito, objeto, etc.) Desde o início, a fala teria sido acompanhado de gestos porque atividades cognitivas complexas sempre tendem a recrutar o corpo inteiro. E as inferências que a gente faz para resolver as ambiguidades usando o conhecimento cultural compartilhado já devem ter sido disponíveis para os inventores da linguagem. 

Enfim, provavelmente nunca saberemos exatamente quando e como a linguagem surgiu. No entanto, discutir a questão é um exercício interessante para interrogar os nossos conceitos sobre o que a linguagem é e como ela funciona. Independentemente de se Everett está certo ou errado com a tese desse livro, não devemos nos limitar com dogmas nessa área em que ainda há muito a descobrir e a repensar.